cristina tejo.   marisa flórido.   rodrigo villela.  luiz guilherme vergara.  gabriela davies.  fernanda terra.


Cristina Tejo
Julho 2023

Flecha

“Para cada discurso empedernido, uma gargalhada zombeteira zumbirá no vento feito um anti-amém, marafando letras e corporificando a palavra como a encruzilhada de onde as flechas voam para desassombrar o medo e encantar o mundo”¹.

Pontas de flechas são um dos objetos mais comuns encontrados em coleções arqueológicas mundo afora, pois trata-se de um artefacto produzido e usado por povos em todas as regiões do planeta com elementos que resistem ao tempo. Elas são uma espécie de marcador de estágios civilizatórios que denotam o grau de complexidade de uma sociedade sob o ponto de vista Ocidental (tipo de material usado, a presença ou ausência de refinamento de sua confecção etc.), numa história contada sempre a partir das guerras, dos confrontos, dos triunfos, numa sequência linear e progressiva da humanidade. No entanto, a flecha que nomeia esta exposição é curva, múltipla, língua, símbolo e cura. Ela liga, não separa. Ela faz (re)viver e não apenas morrer. Ela é imbricação de existências, presenças, experiências e práticas de saberes e ritos como tessitura de um complexo e imensurável balaio de possibilidades de mundo para todos os tempos, todos os seres. Ela é um encantamento, como apontado por Luiz Antônio Simas: “(...) As flechas lançadas atravessarão o redemoinho do tempo e cairão em lugar que só o caboclo sabe. Lanceiros, bocas e mãos de cura, capangueiros da Jurema, naturais do Juremá, mestres das artes do fazer, amansadores de feras, senhoras dos olhos d´água, das floradas e meninos que são os faróis do mundo, o que se ergue na invocação de suas presenças?”².

O chamamento empreendido pelas obras de Mercedes Lachmann presentes nesta mostra começa com flechas que serpenteiam, apontam, simbolizam, arrastam-se e atravessam um corredor e muros centenários, em vivo contato com a coleção arqueológica do MIEC e desemboca em poções de ervas, rituais, e totens que fundem naturezas, temporalidades e territórios (físicos e imateriais). O arqueólogo Eduardo Góes Neves ensinou-nos que a arqueologia não estuda o passado e sim fenômenos do presente, ou seja, “os sítios arqueológicos e outros tipos de registros que viajaram pelo tempo, às vezes por milhões de anos, até os dias de hoje”³, e que o campo de conhecimento que mais se assemelha a ela é a astronomia, já que “o brilho das estrelas ou as ondas de rádio que atingem hoje as antenas ou as lentes dos telescópios modernos são viajantes que iniciaram sua jornada pelo tempo e pelo espaço também há milhões ou bilhões de anos”⁴. As flechas e as estrelas não são, portanto, apenas vestígios nas obras de Mercedes, mas sujeitos carregados de conhecimento e de histórias que atravessaram o Oceano Atlântico numa espécie de levante dos que retornam, dos que ficaram no Brasil ou dos que nunca cá estiveram.

 Céu e terra entrelaçam-se em vários níveis nesta exposição como uma forte conexão com saberes tradicionais e milenares. Em Troprizoma⁵, as fases da lua estão representadas em hastes que roteiam e carregam cápsulas-planetas que contém poções de ervas brasileiras e portuguesas usadas há séculos para curar vários tipos de males. As plantas-mundos corporificam a centralidade que a natureza sempre teve nas culturas humanas até a modernidade. Como se sabe, a desconexão, o desencantamento e a crença na importância de controlar a Terra foi a tônica desde então. Ao mesmo tempo a lua foi substituída pelo sol na contagem do tempo a partir da adoção do calendário gregoriano, em 1582. Por esta época a Inquisição já havia matado centenas de mulheres pelo crime de bruxaria e judaísmo na Europa e nas Américas. Indícios sugerem que a palavra bruxa é oriunda da Península Ibérica na era antiga, anterior à invasão romana e à implementação do latim⁶, já que em outras línguas românicas a nomenclatura é distinta. Apesar de séculos de perseguição, extermínio e apagamentos, estes saberes sobrevivem tanto no lado de cá como no de lá do Atlântico. No Brasil ele convergiu com as práticas de outros povos milenares que lutam até hoje pelo direito à vida. Mas é no vídeo O dia fora do tempo que estes entrecruzamentos afloram de maneira mais direta. Filmado num ritual de queima organizado pelas erveiras da Serra da Mantiqueira, no Estado do Rio de Janeiro, a narrativa não se localiza num tempo certo e nem num lugar determinado. Estamos diante de uma ação entre mulheres de várias idades que, munidas de tochas de fogo, avançam mata adentro, dançam e queimam um imenso preparado de ervas. No calendário maia, o ano é dividido em 13 ciclos lunares de 28 dias cada. No entanto, há uma sobra, um dia que não pertence nem ao ano que acaba e nem ao que se inicia. O dia 25 de julho é chamado de o dia fora do tempo, ou seja, um dia de transição, de suspensão, de ligação e de purificação.

 Os totens criados por Mercedes Lachmann apresentam-se como entidades híbridas. Madeiras encontradas no chão são cuidadosamente esculpidas e trabalhadas respeitando seus movimentos, cavidades e caimentos. Por vezes recebem as esferas contentoras das poções herbáceas, por outras vidros ou flecha. Em todas elas, sente-se o poder de proteção e união com o sagrado. Assim como na série Arraste, a artista honra como suas ancestrais as árvores que foram desmatadas. O desmatamento é uma das consequências da modernidade no Brasil. Esta é a única nação mundial nomeada a partir de uma árvore, nação-árvore. A ibirapitanga (ybirá – árvore; pitanga – vermelho), como chamada pelos povos originários em tupi, iniciou o ciclo de exploração da então colônia portuguesa na América do Sul. Abundante no território que ia do litoral do Rio Grande do Norte ao Rio de Janeiro, num outro bioma chamado Mata Atlântica, o pau-brasil começou a ser extraído em 1502 e trinta anos depois já se tornava difícil encontrá-lo. Apesar disso, sua extração durou até 1875, chegando a causar a quase extinção da espécie. Como se sabe, o pau-brasil era usado para tingir lã, seda e algodão em vermelho, cor associada à nobreza, e subsequentemente na fabricação de móveis de luxo, embarcações e os arcos dos melhores violinos. No século XVI, eram denominados brasileiros as pessoas que extraíam e comercializavam o pau-brasil, designação que foi aplicada depois para quem nasce no país. “Não fosse a influência da exploração do pau-brasil, os habitantes do Brasil seriam chamados de brasilienses ou brasilenses (...) ou ainda brasilianos, brasílicos ou brasílios”⁷. Carregamos, portanto, na nossa nacionalidade a marca, o peso, a herança e a presença do extrativismo, mesmo sem nos apercebermos. Mercedes tem consciência disso. Sua poética busca retificar e celebrar a riqueza e a diversidade da flora de Pindorama⁸. Como nos lembra Simas e Rufino: “O colonialismo, com espectro de terror, política de morte e desencanto que se concretiza na bestialidade, no abuso, na produção incessante de trauma e humilhação, é um corpo, uma infantaria, uma máquina de guerra que ataca toda e qualquer vibração em outro tom. Assim, entoa-se a questão: quais são as possibilidades de ser em um estado radicalizado na violência? Uma possibilidade que lançamos no tempo, como fuga desse modelo, é a de viremos caboclos. Em outros termos, o ser disponibilidade e poder de invocação para praticar a viração na ciência da caboclaria”⁹. Flecha, portanto, é o rogo possível de Mercedes Lachmann e sua poética da caboclaria.


Cristiana Tejo
Lisboa, verão de 2023

           
[1] SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Morula, 2019, p. 5.
[2] SIMAS e RUFINO, Flecha no Tempo, p.7.
[3] NEVES, Eduardo Góes. Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história da Amazônia Central. São Paulo: Ubu Editora, 2022, p.16.
[4] NEVES, Sob os tempos do equinócio, p.17
[5] Importante recordar que a palavra rizoma significa tanto o órgão de reprodução das plantas quanto o conceito cunhado por Giles Deleuze e Felix Guattari para evidenciar um tipo de pensamento que constitui-se horizontalmente, de maneira multidirecional e em fluxo.
[6] MORENO, Claúdio Primo Alves. Morfologia Nominal Do Português, Um Estudo De Fonologia Lexical. 1997. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
[7] ROCHA, Yuri Tavares. Ibirapitanga: história, distribuição geográfica e conservação do pau-brasil (caesalpinia echinata LAM., leguminosae) do descobrimento à atualidade. 2004. 396 f. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004, p. 184.
[8] Pindorama é como era chamado pelos povos originários o território nomeado pelos portugueses como Brasil.
[9] SIMAS e RUFINO, Flecha no Tempo, p.10.


Marisa Flórido
Outubro 2022

Há céu por toda parte

Há algo de alquímico nestes experimentos artísticos de Mercedes Lachmann. A sala expositiva recorda-nos um dos modos mais usuais de se representar pictoricamente o ateliê do artista entre os séculos XVI e XVII: o laboratório do alquimista. Vidros, objetos e líquidos preenchiam o ateliê, onde se processaria a transmutação e purificação dos elementos, onde se realizaria a obra que, deixada à posteridade, transgrediria a morte.  Um ateliê que encerrava magia, arte e ciência, no qual a sabedoria secreta do artista-alquimista buscava desvendar os vínculos ocultos que atam seres e coisas, o mistério da matéria, da criação e das metamorfoses.

E, no entanto, se há algo de alquímico nos experimentos de Mercedes, trata-se sobretudo de perceber a vida como dança alquímica, de ouvir o sussurro das plantas, de aprender com elas a beijar o céu. Pois o céu sempre correspondeu a esse beijo, doando-lhes a energia que elas transformam nessa matéria química, que se move e se molda em infinitas formas viventes. Oxigênio e luz. É por essa transdução de energia solar, essa comunhão que ocorre, em seu corpo vegetal, entre céu e terra, entre sol e este planeta verde, que há vida. Como fala Emanuele Coccia [A vida das plantas], autor caro à artista, a vida é um fato celeste, tudo o que vemos, respira e move não é senão céu; e, se a vida é também um fato vegetal, é porque está nele a força cosmogônica, contínua e perpétua, que cria o mundo dos viventes. Há uma sabedoria secreta, decerto, mas são antes as plantas a nos ensinar.

Mercedes coleta folhas que encontra por suas andanças, troncos que restaram dos “arrastes” (assim nomeado, por madeireiros, o deslocamento das árvores derrubadas até seu escoamento), ervas com propriedades medicinais e mágicas para compor o que define como seus jardins regenerantes.  Regenerar pela arte a vida desses seres em fim de ciclo, entender com eles a respiração que dá ritmo e forma à nossa imersão no mundo, aprender enfim a capacidade metamórfica de seu pensamento. Reconhecer que as plantas pensam é deslocar o homem de um lugar tão privilegiado quanto narcísico como único ser dotado de consciência, palavra, espírito.

Quimeras afirmam que a vida é uma força telúrica que hospeda, se mistura e se metamorfoseia em uma pluralidade de vidas, que somos seres híbridos em inextricável interdependência. Em Arrastes, os troncos abatidos ganham pulmões e carícias de vidro, que se amoldam à ferida da árvore morta, como se, para a dor vegetal, fosse urgente o unguento que lhes devolvesse o que é sua maior dádiva: o sopro de vida quando tudo começou a respirar.

Tropismos e Campos de força compõem uma partitura cósmica. São campos de energia regenerante (a transmutação em tubos de ensaio das forças curativas e mágicas de folhas como lavanda, camomila, urucum); de energia cromática (os tons de sépia, amarelo, verde que derivam da mistura com a água); de energia sonora (porque desenham uma partitura de tons e vórtices de uma música cósmica mundana que traduz em visualidade o que nos falam as plantas).

Se toda cosmologia precisa partir de uma reflexão botânica, é porque toda forma de vida é uma forma de mundo que carrega o céu, a mistura quimérica de que somos feitos, suas transmutações perpétuas, e o movimento do astro como este aqui em que vivemos. Há céu por toda parte.



Rodrigo Villela                                   
Junho 2022

UNIVERSO EM CONTENÇÃO
laboratório de alquimia vegetal


"Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam,
agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser."

Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo


Esta exposição apresenta um recorte de trabalhos recentes da artista carioca Mercedes Lachmann, com esculturas, objetos e vídeos, nos quais ela estabelece uma relação de interesse e intimidade com a natureza. Em sua pesquisa, procura compreender os mecanismos inteligentes das florestas, as formas de comunicação e de relacionamento das plantas, até se aproximar do legado medicinal dos povos originários, estudando as funções curativas para o espírito e a saúde, e o entendimento simbólico desses elementos. A partir desse arcabouço inicial, Mercedes elabora poeticamente seu laboratório de alquimia vegetal, baseando-se na transmutação da matéria e no trabalho com elementos brutos e vivos.

Na obra " Campo de Força_2 ", a artista apresenta ampolas e esferas herméticas de vidro, de formato e tamanhos variados, que contém ervas embebidas em líquidos. As ervas foram selecionadas de acordo com seu potencial medicinal, num exercício de contenção do tempo
e do saber, tanto para preservar a natureza e o conhecimento ancestral, como para estancar o processo da ação do tempo sob a natureza, criando assim um receptáculo para esses conhecimentos ancestrais. Nessa mesma direção, o vídeo "Coleta" documenta a
artista recolhendo água no Rio Bonito, em Vale das Cruzes, Mauá (RJ), armazenada em vidros.

Já na obra "Arraste'', troncos de árvores caídas são unidos ao vidro. Os troncos, cujo destino seria a decomposição, são levados ao contato direto com o vidro ainda fluido, que queima a madeira com a qual entra em contato e se derrete por ela absorvendo sua forma.
A artista cria esculturas únicas, que surgem de uma espécie de transmutação, quando o fogo une os materiais, e inaugura algo novo.

Dando sequência aos trabalhos ligados a alguma espécie sutil de preservação, a artista apresenta ainda "Quimera vegetal", com folhas de palmeira, que passam por vários processos de limpeza, secagem, tratamentos, tingimento em branco ou preto, ou mesmo a
transformação em bronze, para criar esculturas que flutuam na parede. Partindo do elemento natural são trabalhadas com outras cores, desvinculando-as de seu lugar de origem, dando a elas uma nova força e convidando a uma nova percepção.
Num exercício de supressão da natureza e do tempo, Mercedes Lachmann procura pausar processos que seriam naturais com procedimentos antinaturais, para cristalizar um momento e criar um universo de contenção e preservação. Como um manifesto artístico em favor das florestas, e do conhecimento cultivado em torno delas, surgem obras simbólicas que partem do meio ambiente, do fluxo de nascimento e morte, trazendo toda força natural.

Assim como as ilustrações botânicas das primeiras expedições exploratórias registraram a flora brasileira, Mercedes retrabalha uma espécie de catalogação metonímica, onde um único elemento, seja fruto, tronco ou folha, traz a natureza plena para seu trabalho. Ao
inseri-la num universo de contenção e pesquisa laboratorial, oferece um convite que vai ao encontro das palavras precisas de Ailton Krenak: "Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente
como 'natureza', mas que por alguma razão ainda se confunde com ela”.




Luiz Guilherme Vergara
Janeiro 2017

Benção de Deus VIII | Transbordamentos em Trânsito

Mercedes Lachmann, Benção de Deus Entre Mundos    


Antes de mais nada, Mercedes Lachmann embarca em uma navegação artística e nos conduz a uma viagem mitológica contemporânea e transtemporal ao mesmo tempo. O vídeo Benção de Deus VIII – transbordamentos em trânsito adquire uma potência poética e existencial de ser imagem e veículo de transporte para oceanos imemoriais para dentro e fora, realidade e ficção de si mesmo como origem e destino mitológicos universais de resgates do principio feminino de comunhão com a natureza ou Alma do Mundo ou Alma Mater.  Porém, a artista não abre mão do real, da crise ambiental local e global, diluindo com águas escondidas as certezas sobre o que pode ser ainda transfigurado para o lugar e o sentido da arte no mundo contemporâneo. O que nos faz tanto pensar sobre esta obra como odisseia humana já é parte das ressonâncias de devires contemporâneos que flutuam como parte da aura predestinada pelo batismo do barco, deflagradora de um acontecimento único na arte e vida da Mercedes que se expande em processos de superações de obstáculos e ativações de locais específicos, mas também existenciais e ambientais e atingem sua culminância no universal-simbólico.

Acompanhando esta trajetória desde 2014, pode-se reconhecer todo o processo artístico como um único acontecimento que se estende em vários momentos e situamentos geopoéticos até se desdobrar na ideia de um vídeo, trazendo à tona o oceano profundo de imaginários por onde a artista navega como ensaio onírico, não desconhecendo a fatalidade tangível do real, da poluição da baía de Guanabara, que dá corpo e territorialidade a emergência simbólica da Alma Mater. É com o vídeo que a Mercedes vai encontrar o suporte (i)material para melhor projetar o protagonismo documental, ficcional e mitológico das muitas transfigurações da carcaça do barco comum abandonado-achado-erguido e ressuscitado do fundo do mar morto, mas especificamente lodo – lama e então identificado como Benção de Deus.

Se por um lado, experimentam-se como intuições palpáveis as dimensões fenomenológica e hermenêutica dos elementos expressivos desta narrativa também autobiográfica e ontológica da artista, desvelando-se como Eu-Barco o drama da crise ambiental, até a performance de sublimação batismal e mergulho Eu-Nós oceano, Alma Mundo. Por outro, e essencialmente, pelo fenômeno do acontecimento artístico, a artista constrói uma arquitetônica plástica e existencial quântica  que se manifesta por conexões e conectividades.  A extensão de si – Eu-Barco – na medida que abriu mundos distantes de si mesma, representou também uma arqueologia da criação ou nostalgia libertadora de novos modos de percepção, pertencimento e expressão de memórias e sentidos estagnados entre vide e obra da artista.

Entre uma embarcação achada e o vídeo transbordam-se relações de errâncias semânticas e ontológicas que culminam no mergulho “Eu-Oceano”.  Primeiramente, registra-se que o desejo da artista de devolver o barco Benção de Deus para o oceano limpo (fora da baía de Guanabara) como uma escultura ambiental, projetando seu afundamento como recife feito de um barco de pescador, então devir provedor de meio ambiente fértil para um ecossistema ideal de fecundação, alimentação e reprodução de peixes, reintegrando o velha carcaça do barco ao círculo da vida-morte marinha, não se realizou.  O vídeo é portanto deriva magnética ou desvio para uma outra correnteza, não mais como intervenção simbólica-ambiental direta na natureza, mas como linguagem artística abrindo um canal para outra navegação arqueológica, que se constrói de imagens como uma meditação visual modelada por inserções de performances alternando presenças de gestos e corpos masculino e feminino com a trajetória do barco do fundo do mar às intervenções urbanas na Glória e Niterói.  Daí se revela uma Alma Mundo na migração e metamorfoses da realidade atravessada pelo desejo não ainda consciente de comunhão – eu-barco ao eu todo oceano – útero cósmico.

Sem negar a fatalidade orgânica do negro lodo da estagnação da Ilha de Conceição a Benção de Deus aporta em diferentes  aterros – da Glória (RJ) às águas escondidas (Niterói) do Campo de São Bento, como agente de ressonâncias magnéticas das memórias das marés subterrâneas e subconscientes.  Tanto o vídeo quanto o deslocamento e instalação do Barco-escultura em parques, a artista é capaz de navegar o Argo-Náutico da (in)consciência contemporânea, des-enterrar memórias urbanas locais e imaginárias transbordando qualquer sentido formalista de estética monumental em si mesma ou arte pública. A artista se deixa levar por correntezas conjugadas pela bússola da intuição de futuros não ainda conscientes, ou anacrônicos e imponderáveis do seu processo e carreira artística que culmina no parque como playground. Mercedes não tem o controle total do timão da nau, o que torna mais existencialista e experimental seu mergulho liminal no oceano de outramentos de si mesma.



Gabriela Davies

Janeiro 2017

Águas  escondidas

Existe uma vontade de ver a vida de maneira inacabável, como se não houvesse fim. E por um lado, enquanto matérias se decompõem, elas se tornam algo novo. Todo processo de composição é de fato recomposição – a matéria vem de fonte anterior. Algo existente que se torna novo. E a vida está sempre se revolvendo dessa maneira. Existe um início, um meio, um fim e um recomeço, um processo cíclico.

Como energia que passa de matéria em matéria, e se readapta ao seu novo propósito, assim foi o trajeto de “Águas Escondidas”. Nasceu o barco, como uma plataforma para levar o homem ao mar, facilitando a pesca – o ofício de seu proprietário. E depois de um longo ciclo de idas e vindas da terra ao mar, essa fase se conclui ao naufragar nos mares de Niterói.

E foi assim, em fase de decomposição, que Mercedes o retirou do mar. O nome, quase milagrosamente surge pintado na lateral: Benção de Deus. O barco, (agora) fora de seu ambiente, toma novos rumos. Sai do mar, e vai para terra, viajando até o extremo oposto da Baía de Guanabara, ganhando uma residência temporária na Glória.

Ele deixa de ser transporte, de provedor de serviço, e se torna um objeto de contemplação onde a própria interatividade da peça com o homem é contestada. A decomposição física se torna disassociação do propósito original, ganhando uma nova narrativa. No final de sua estadia na Praça Paris, ele retorna à Niterói, onde nasceu, pelo menos desde a intervenção de Mercedes.

Ao desembarcar de volta às margens da Baía que o afundou, esse processo não se encerra, mas cria mais uma vez um recomeço. A nau que se deteriorou dentro do mar, agora ganha uma nova extensão na terra.



Luiz Guilherme Vergara


Área de emergência[1]

Dádiva da arte                    


É das ruas do entorno da Praça Paris que os transeuntes, passantes desavisados de carro e ônibus, as famílias do entorno, como também os moradores de rua e os pedestres locais notam esta verdadeira aparição, barco fantasma, chamado “Benção de Deus”. São diferentes olhares, estranhamentos e afetos de acordo com suas velocidades, hábitos e distancias. Mas, com certeza, esta intervenção artística encarna a “vontade de potência” definida por Nietzsche[2], atualizada para esse cenário como catalisadora de um transbordamento especial entre o real e a ficção da história enterrada da cidade. Mas quem sabe seja também uma re-territorialização crítica e sublime de uma dádiva da arte para a cidade e para a artista por trazer à tona uma memória líquida coletiva soterrada pela ordem (dis)funcional da vida urbana moderna do esquecimento?   Se por um lado esta instalação ambiental se alinha ao sentido de “área de emergência” que Raquel Tardin propõe para as experiências visuais urbanas ou naturais.  Por outro, resgatando a conceituação de Deleuze-Guattari para “causalidades reversas”[3],  identifica-se a apropriação e deslocamento do barco para a Praça Paris com uma potente reversão mutua entre efeitos e causas, fundando este acontecimento solidário da arte na paisagem. Mercedes subverte a proposição de Tardin para as “áreas de emergência visual”, cujas referências positivas seriam orientadas pela presença (e não ausência) “de amplas lâminas de água que definem uma paisagem.”

“das principais referências topográficas e hidrográficas dos espaços livres com focos visuais que caracterizam a estrutura física do lugar e que podem ser percebidos a partir do movimento pelas vias.”(Tardin)

Se Tardin propõe uma visão sistêmica que se ordena a partir de fenômenos topográficos e hidrográficos, dando aberturas para os ritmos de usos e práticas dos espaços urbanizados ou da vida pública. Mercedes rompe critica e poeticamente esta ordem natural – cultural das práticas dos espaços públicos, provocando uma estranha “abertura visual” a partir da Praça Paris,  pelo des-aterramento plástico e simbólico da memória do mar. O barco – Benção de Deus –  ao mesmo tempo que é resgatado de seu destino de abandono-esquecimento no fundo do mar, é também deslocado para o campo de potência de enunciação metafórica (transporte) da arte.  Na paisagem urbana – a carcaça de um velho barco emerge visualmente já coberto pela outra vida (sub)marinha – que então retorna para a navegação artística como utopia de um sonho diurno. O deslocamento deste barco-escultura contemporânea inaugura uma outra área e temporalidade de emergências imaginárias afetadas e catalisadoras de memórias líquidas soterradas ou do aterramento do mar que antes ali regia e atrapalhava os ritmos e caminhos do entorno da Glória. 

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Emergency zone[1]

The gift of art or The Boom of the Arts


It is from the streets of Praça Paris square that commuters, unaware witnesses in their cars and buses, families living nearby, as well as the homeless and local pedestrians observe this true apparition, a phantom- ship named "Benção de Deus" (God's Blessing). According to their speeds, habits and distances, there are different ways of appreciating, identifying and endearing, . Nevertheless, this artistic intervention, certainly embodies the "will to power" as defined by Nietzsche[1], apprised to this scenario as a catalyst for a distinct overflow between the reality and fiction of the city's buried history. Perhaps, it may also be a critical and sublime re-territorialization of the gift of art to the city and to the artist for  unveiling a collective liquid memory buried by the (dis)functional order of the modern urban life of oblivion? If on the one hand this environmental installation embodies the meaning of "emergency zone" proposed by Raquel Tardin for urban or natural visual experiences, on the other hand, making use of Deleuze-Guattari's conceptualization of "reverse causalities"[2], one identifies the boat’s appropriation and displacement to Praça Paris square as a powerful reversal of cause and effect, founding this
solidary occurance of art with the landscape. . Mercedes undermines Tardin's proposition of "visual emergency zones", whose positive references would be guided by the presence (not the absence) of "large bodies of water defining a landscape".

"of the main topographical and hydrographical references of open spaces with visual attention which characterize the local physical structure and can  be apparent to those moving on the roadways." (Tardin)

While Tardin proposes a systemic vision based on topographic and hydrographic phenomena, allowing for urban spaces or public life’s rythmic customs and practices of; Mercedes critically and poetically breaks this natural order of the practices of public spaces — evoking a strange "opening" at Praça Paris through the symbolic unearthing of the ocean’s memory. The boat — God's Blessing — is simultaneously rescued from its destiny of abandonment-oblivion at the bottom of the sea and also moved to the powerful field of metaphorical enunciation (transportation) of art. In the urban landscape, the carcass of a boat emerges visually covered by other (sub)marine life, to then return to artistic steerings as a daydream utopia. The displacement of this contemporary boat-sculpture unlocks another area and temporality of imaginary emergencies affecting and catalyzing buried liquid memories or the land-filling of the sea that once ruled there and disrupted the rhythms and paths around Glória (the name of the neighborhood in which the Praça Paris square is located).

[1]The title proposed for this installation is inspired by Raquel Tardin's concept of "visual emergency zones". Tardin, Raquel. Espaços Livres: Sistema e Projeto Territorial. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008
[1] NIETZSCHE, F. W.. Assim falava Zaratustra (Thus Spoke Zarathustra). Translation by Ciro Mioranza. 2nd edition São Paulo: Escala, [nd]. p. 106-109. Grandes Obras do Pensamento collection.
See also. Nietzsche, F. Vontade de Potência (Will to Power). Translation by Mario D. Ferreira Santos. Rio de Janeiro: Ediouro. [nd].
[1]DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. A thousand plateaus: capitalism and schizophrenia. Minnesota: The University of Minnesota Press, 2005.


Luiz Guilherme Vergara
Julho 2014 

Tempo Zero :  Arqueologia de um sonho diurno


Como abordar ou entrar a bordo de uma obra-intervenção ambiental enquanto um acontecimento único formado por imprevisíveis casualidades de encontros envolventes, por onde se processam reconfigurações e transformações de sentidos públicos e privados da existência? Assim, este ensaio se desenvolve como uma escrita em espiral reconhecendo as inúmeras camadas em desdobras deste processo de criação e des-criação de ser, linguagem e mundo que giram entorno do acontecimento e intervenção da Mercedes Lachmann na Glória.  Embora temporária este instalação encarna literalmente o conceito de afetos em trânsito numa “área de emergência”, violência, e esquecimentos do Rio de Janeiro.  Uma primeira “eclosão de imaginários” nasce imediatamente da resposta intuitiva ou latente na artista diante do convite para a  I Mostra RIO de Esculturas Monumentais  -  na Praça Paris.

“Logo pensei no mar! Queria trabalhar com o mar, sabia que aquela região tinha sido banhada pelas águas da Baía de Guanabara....e pensei: quero trazer de volta, resgatar a presença dessa água que foi aterrada. Ao andar pela Praça Paris minha imaginação e curiosidade fervilhavam, quanta coisa havia abaixo daquela terra...” lembra  Mercedes.

Neste depoimento percebe-se um tempo zero inaugural de uma fenomenologia da imaginação onde a enunciação revela o que ainda não é consciente da plena fruição de territórios de devires entre a artista e o mundo, sua cidade, a praça e a si mesma. É justamente na percepção de uma área livre pública para a obra em processo da Mercedes que emerge a vontade de potência de agir como se o mundo interno ao que é visível fosse indissociável do horizonte de invenção e antecipação do real-futuro. Desta primeira causalidade do acontecimento do ser-artista no mundo, amplia-se o conceito de “área de emergência” para uma tomada de si como território existencial de uma arqueologia de um sonho diurno – autopoiética.  A artista assume a rota crítica do des-terramento do mar como desejo e destino de uma cartógrafa sensível de uma navegação noturna sob o aterro do esquecimento, do que foi, e o que é hoje a Praça Paris. Mas, simultaneamente, em reversíveis causalidades e casualidades, também emerge de profundos aterramentos existenciais, o que foi e o vir a ser do estado da arte para a artista. A paisagem da ausência do mar se desdobra em potência intrínseca de transbordamento da matéria poética e imaginária do mundo.


Tempo 1: Rota de Descobrimentos – des-terramentos de memórias liquidas

Reversibilidade Causal – Causalidades/Casualidades Reversas: antecipação de futuros / atualidade do passado – presente liquido

“Imaginei uma proa de um barco despontando daquele oceano encoberto, uma proa que apontasse para o céu, em um movimento ascendente. Então parti para construir essa proa, esse barco e, para isso, fui investigar o bambu. Primeiramente porque o bambu é uma fibra vegetal, como o sisal que venho utilizando nos meus trabalhos. Depois porque é leve, de fácil acesso e custo razoável.”

Como desterrar, trazer à tona,  a área livre de águas da baía de Guanabara para a Praça Paris?

(...) até que um amigo velejador veio me visitar e ao ver meus estudos em bambu fez a pergunta fatal: Mercedes ao invés de construir um barco, por que você não pega um já pronto?

(...) decidi buscar um barco. Porém esse barco não poderia ser novo, teria que trazer sua história com o mar, vir das profundezas, tal qual o mar que eu estava buscando. Todo aquele mar que havia na Gloria antes de 1926.

Desde o seu processo inicial de um convite para expor na Praça Paris até o chegar – aterrissar – da Benção de Deus – a artista percorreu uma odisséia – rota de decisões, “intuições palpáveis” (Bakhtin, 1999) e revelações que conjugam subversões de ordens entre o dentro e o fora do mundo e de si, quando ambos se transbordam como áreas entrelaçadas de emergências. Mas, para tanto, a artista se entrega ao mergulho liminal e desorientante entre as linhas de sentido de causas e efeitos. A origem e destino das idéias e ações, dos encontros e a sua fenomenologia da imaginação, estariam também sendo conduzidos por  reversibilidades causais, entrelaçamentos entre causalidade – casualidade. O processo de criação ao qual Mercedes embarcou se torna um fluxo contínuo de eventos que culminam como área de acontecimento único – da emergência de futuros imediato sobre o presente; a intuição palpável do presente no passado e vice-verso. Reverte-se também o sentido de mar como passado e o aterro como presente. O barco – dádiva da arte - sobre o aterro torna a ausência do mar como paisagem imaginária-concreta!  A paisagem da Glória é devolvida ao mar que não existe mais – afastado – soterrado.


Tempo 2:  Manifesto contemporâneo para uma memória liquida soterrada

Arte como território líquido de conectividades livres


O barco, Benção de Deus, ou dádiva da arte pode ser visto como um emergente manifesto artístico, um grito silencioso que a artista Mercedes desenterrou da memória afogada pela acomodação e estabelecimento da vida e vias de passagem do bairro Glória. O Barco, a “barca do sol”,  os Homeros e heróis das batalhas navais, o Almirante Barroso, parecem todos também pertencerem as conectividades livres deste tempo suspenso do acontecimento único da dádiva da arte.  Neste eclosão do fenômeno artístico, cabe também trazer a tese de Tardin para uma visão sistêmica de conectividade ampliada sobre as áreas livre. O imaginário simbólico e poético desta obra sobrevoa uma terceira margem do tempo do Rio comovido pela vontade de potência da arte.  Ao ser de uma outra ordem da razão tanto a Benção de Deus e a Dádiva da Arte operam sinergias imanentes e transcendentes das fronteiras híbridas dos movimentos e práticas artísticas contemporâneos, como arqueologias e cartografias da memória e matéria do mundo. Sua presença como reaparecimento do oceano no aterro transporta as múltiplas temporalidades do simbólico, poético e espiritual que navegam no mar, mas que também atrapalhavam a passagem e trânsitos, com as ressacas e tempestades que atingiam a mureta da Glória – muralhas de contenção urbana das forças da natureza. Hoje o barco está diante da mureta como um manifesto de ordem pública da arte - lembra do que resta, curiosamente,  como última barreira reminiscente da memória liquida do sensível soterrado da cidade.


Vontade de potência – odisséia para Homeros contemporâneos

A Benção de Deus – é literalmente uma presença demasiada estranha à primeira vista.  Mas como intervenção artística alcança pelo estranhamento sua potência como acontecimento desequilibrante da ordem e dos ritmos dos praticantes e usuários dos espaços daquele entorno. Sem dúvida sua proa apontada para o céu realiza o desejo e visão da artista de transformar o deslocamento deste barco como eclosão de memórias profundas daquele lugar que um dia foi mar. Hoje, Mercedes provoca a todos a desacelerar suas visões e passagens para contemplar este velho barco cercado de cidade – seja por trás das grades da praça ou ruas da Glória e aterro,   deslocando o centro da paisagem / mundo para girar em torno da potência e geografia do acontecimento único da arte. Esta silenciosa presença se contrapõe ao primado da velocidade que promoveu o próprio aterramento do mar da enseada da Glória.  Como o avesso do retorno de Ulisses, os resíduos desta nau trazem a memória líquida da odisséia da cidade maravilhosa de volta aos Homeros, esquecidos e cegos contemporâneos.  Esta impactante intervenção ambiental resgata o sentido de dádiva da arte – tanto para a artista no despertar de horizontes para sua carreira, enquanto potência e destino de doar virtudes, quanto para a cidade ao desaterrar futuros coletivos através de imaginários compartilhados.

Embora “área de emergência” seja o título escolhido pela artista,  inúmeros outros nomes foram pensados pela Mercedes. O que emerge como acontecimento único é uma desdobra de causalidades de dimensões fortemente fenomênicas e existenciais: Erupções / Transbordamentos / Fábulas Marítimas / Retorno / Volta / Emerção / Escavações / Descobrimentos / Á tona / Trazer á tona / Emergentes / Emergência / Ressurgência / Vestígios / Paisagem submersa / Lugar de emergência / Presente reminiscente / Despertar / Mar como paisagem / memória de um esquecimento / Área de emergência.

Ao percorrer mais detidamente a arqueologia desta odisséia da Mercedes, o sentido de emergência habita cada um desses títulos. O que vêm à tona é causa ou casualidade como parte da captura da artista por correntes de forças imanentes e transcendentes adormecidas no subsolo do aterro visível, do mar soterrado pela história da cidade. Identifica-se nesta elasticidade do tempo o entrelaçamento de múltiplas camadas de eventos ao que Bakhtin[4] propõe como “acontecimento único do ser no mundo”.  A área de emergência se desdobra para a artista como uma abertura de si para uma arqueologia esquecida que é também da cidade.  É necessário reconhecer o tempo e oportunidade para mergulhar em uma odisséia de experiências de transbordamentos e eclosão de uma paisagem submersa de sentidos da ausência e esquecimentos.

A memória líquida transportada pelo barco conduz também a artista, Ulisses contemporâneo – ainda mulher, não Penelope,  através de uma corrente de casualidades revestidas por seus efeitos. Assim o barco transporta=metáfora do mar para a cidade.  Mercedes cumpre um destino-dádiva de resgate não apenas daquele entre muitos barcos perdidos no fundo da Baía de Guanabara, mas também do lugar de emergências de futuros, dando forma para uma experiência cartográfica de ser e linguagem no mundo como acontecimento artístico. Este acontecimento-obra, barco renascido -  reinventa a paisagem negada do mar dando realidade encarnada ao imaginário da artista sobre a história da Glória.  

Esta dádiva da arte age simultaneamente por eclosão e construção como vontade de potencia para Nietzsche. Seu tempo-espaço, como tal,  é sempre inaugural – irracional – não ainda consciente,  indissociável dos fluxos opostos de convergência e emergência entre futuro no presente, e passado sobre o presente. É desta vontade que o mundo invisível pelo esquecimento – pelo aterramento da cidade que invadiu o mar,  emerge dos vestígios de uma “intuição palpável” (Bakhtin, 1999) que traz à tona para si e para a sociedade um gesto de dádiva-presente reminiscente.   O acontecimento único de ser no mundo criador eclode como reversibilidade causal entre existência e arte – da paisagem da ausência do mar para a presença transbordante da gestação artística. 

“O mundo visto de dentro, o mundo determinado por seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nada mais” – Nietzsche[5].

Nesta reversibilidade fenomenológica do acontecimento mútuo do ser e da arte amplia-se o que Raquel Tardin define como "áreas de emergência visual". “(…) Referem-se aos elementos singulares que compõem os espaços livres, especificamente o relevo e a hidrografia, e que podem ser percebidos desde os percursos pelas vias.”(p.144). Pois Mercedes explora a paisagem da ausência do mar não como um espaço dado ao que é visível, mas pelo esquecimento, pelos elementos des-criados, soterrados, cuja emergência passa da memória para a potência de futuro do passado. Nesta arqueologia do esquecimento urbano a área de emergência ativada pela Mercedes se desdobra em campo da fenomenologia da imaginação.  O barco – salva-vidas – transporta em seu estado de desaparecimento a eclosão positiva e palpável de uma memória liquida compartilhada.

Mercedes inaugura também com esta intervenção pública de escala monumental uma carreira regida pela vontade de potência de romper regras e padrões limitadores do “exercício experimental de liberdade” (Mario Pedrosa).  Vontade de potência seria o melhor atributo para entender o lugar da artista como geradora de dádivas que conduzem as causas e casualidade do acontecimento único de emergências simbólicas de memórias do mar da Glória. Nesta obra Mercedes já se coloca aberta para o século XXI, transbordando o campo ampliado de passagens de paradigmas da escultura – arte pública – modernista para a contemporânea.  Suas afinidades eletivas, conscientes e não ainda conscientes, que navegam no Barco – Benção de Deus - remetem a artistas que atuam como arqueólogos  – viajantes de uma razão nomádica – de Homeros contemporâneos, desterrando por intuições palpáveis as relações entre lugar, esquecimento e imaginários sitiados.

Na medida em que seu barco-acontecimento na Glória invoca a presença / ausência do mar, em meio a movimentada vida da cidade do Rio de Janeiro, a artista encarna a matéria e memória do mundo, arquitetura e paisagem de múltiplas forças existenciais.  É desta fenomenologia da imaginação que Mercedes atualiza para si o campo ampliado da escultura como acontecimento do ser no mundo. Inaugura áreas de emergência visual pela arte, o que remete a land art de Robert Smithson que instaurou em uma remota região de Utah uma escultura simbólica e mítica, Spiral Jetty (Great Salt Lake, Utah, 1970), tornando matéria e memória visual uma cosmologia de povos locais esquecidos da razão ocidental.  Da mesma forma, Tácita Dean viaja por diferentes partes do mundo, recuperando um sentido e aura de história e memória de distintos lugares e tempo, produzindo uma poética especial da matéria luz (lúcida) transtemporal de seus filmes, desenhos e instalações.

Mercedes Lachmann, com toda a coragem de quem está “se” inaugurando como Odisséia, o acontecimento único no mundo da arte, entrelaça como sua a história esquecida desta cidade. Nesta navegação simbólica abre como eclosão artística e existencial a memória do mar aterrado do Rio, indissociável da emergência e urgência da “vontade de potência” da dádiva da arte no tempo presente.


[1] O título proposto para essa instalação é inspirado no conceito de "áreas de emergência visual" de Raquel Tardin. Tardin, Raquel. Espaços Livres: Sistema e Projeto Territorial. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008
[2] NIETZSCHE, F. W.. Assim falava Zaratustra. Tradução de Ciro Mioranza. 2. ed. São Paulo: Escala, [s.d]. p. 106-109. Coleção grandes obras do pensamento.
Ver também. Nietzsche, F. Vontade de Potência. Tradução de Mário D. Ferreira Santos. Rio de Janeiro: Ediouro. [s.d.].
[3] DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. A thousand plateaus: capitalism and schizophrenia. Minnesota: the University of Minnesota Press, 2005.
[4] BAKHTIN,M.M. Toward a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, 1999.
[5] NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §36.
   


Fernanda Terra
 
Agosto 2013

Mercedes Lachmann é escultora. Em suas obras feitas de sisal está presente o sentido do fazer, da manualidade, da construção. De forma intuitiva e visceral a artista realiza grandes esculturas que transbordam  o espaço  interno da obra e se relacionam diretamente com o espaço em que são apresentadas.

Na obra ARCO, através de uma tecnologia primitiva, remetendo aos primórdios da humanidade, aos primeiros gestos, a artista ordena a matéria utilizando as fibras do sisal orgânico sem costuras, nem amarras. Ela trama, entrelaça, urde e tece os fios longos do sisal, formando grandes estruturas, em escala arquitetônica, em uma relação pulsante e intuitiva com o espaço. Neste sistema a artista tinge o sisal com cores terrosas criando laços com a memória e a imaginação de tempos primordiais. Tudo em sua obra é orgânico e ancestral, nos evoca ao plano simbólico da existência.

A obra MANTO que será apresentada em uma série de quatro fotografias em grande formato é uma combinação de arquitetura, sítio e paisagem. É uma construção monumental contundente, porém, leve e móvel que pende de um tronco de árvore centenária, na qual está ligeiramente apoiada. A trama do sisal deixa transparecer a luz que a atravessa criando uma relação direta com a floresta.  A obra fala de pele, superfície, de vazios e cheios, de transparências, vazados e opacidades. Ela se integra harmoniosamente a natureza , é absorvida por ela.  É a própria natureza reinventada, tramada e que interiorizada, nos transporta a uma relação espiritual como quando entramos nos templos gregos e nas grandes catedrais góticas.

Já a obra NÚCLEOS nos impõe uma relação direta com o ambiente e com nosso corpo. São construções de habitat, do lugar de refúgio, do abrigo. Um lugar de origem em que o corpo se adapta perfeitamente a organicidade do espaço. A casa primordial. Um gesto arquitetônico que separa o homem de seu meio natural. Um invólucro que nos remete a um dentro e um fora, ao interior ao exterior, ao micro e macrocosmos. A interioridade e exterioridade psíquica.



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