Cristina Tejo
Julho 2023

Flecha

            “Para cada discurso empedernido, uma gargalhada zombeteira zumbirá no vento feito um anti-amém, marafando letras e corporificando a palavra como a encruzilhada de onde as flechas voam para desassombrar o medo e encantar o mundo”¹.

            Pontas de flechas são um dos objetos mais comuns encontrados em coleções arqueológicas mundo afora, pois trata-se de um artefacto produzido e usado por povos em todas as regiões do planeta com elementos que resistem ao tempo. Elas são uma espécie de marcador de estágios civilizatórios que denotam o grau de complexidade de uma sociedade sob o ponto de vista Ocidental (tipo de material usado, a presença ou ausência de refinamento de sua confecção etc.), numa história contada sempre a partir das guerras, dos confrontos, dos triunfos, numa sequência linear e progressiva da humanidade. No entanto, a flecha que nomeia esta exposição é curva, múltipla, língua, símbolo e cura. Ela liga, não separa. Ela faz (re)viver e não apenas morrer. Ela é imbricação de existências, presenças, experiências e práticas de saberes e ritos como tessitura de um complexo e imensurável balaio de possibilidades de mundo para todos os tempos, todos os seres. Ela é um encantamento, como apontado por Luiz Antônio Simas: “(...) As flechas lançadas atravessarão o redemoinho do tempo e cairão em lugar que só o caboclo sabe. Lanceiros, bocas e mãos de cura, capangueiros da Jurema, naturais do Juremá, mestres das artes do fazer, amansadores de feras, senhoras dos olhos d´água, das floradas e meninos que são os faróis do mundo, o que se ergue na invocação de suas presenças?”² .
 
          O chamamento empreendido pelas obras de Mercedes Lachmann presentes nesta mostra começa com flechas que serpenteiam, apontam, simbolizam, arrastam-se e atravessam um corredor e muros centenários, em vivo contato com a coleção arqueológica do MIEC e desemboca em poções de ervas, rituais, e totens que fundem naturezas, temporalidades e territórios (físicos e imateriais). O arqueólogo Eduardo Góes Neves ensinou-nos que a arqueologia não estuda o passado e sim fenômenos do presente, ou seja, “os sítios arqueológicos e outros tipos de registros que viajaram pelo tempo, às vezes por milhões de anos, até os dias de hoje”³, e que o campo de conhecimento que mais se assemelha a ela é a astronomia, já que “o brilho das estrelas ou as ondas de rádio que atingem hoje as antenas ou as lentes dos telescópios modernos são viajantes que iniciaram sua jornada pelo tempo e pelo espaço também há milhões ou bilhões de anos”⁴. As flechas e as estrelas não são, portanto, apenas vestígios nas obras de Mercedes, mas sujeitos carregados de conhecimento e de histórias que atravessaram o Oceano Atlântico numa espécie de levante dos que retornam, dos que ficaram no Brasil ou dos que nunca cá estiveram.

            Céu e terra entrelaçam-se em vários níveis nesta exposição como uma forte conexão com saberes tradicionais e milenares. Em Troprizoma⁵, as fases da lua estão representadas em hastes que roteiam e carregam cápsulas-planetas que contém poções de ervas brasileiras e portuguesas usadas há séculos para curar vários tipos de males. As plantas-mundos corporificam a centralidade que a natureza sempre teve nas culturas humanas até a modernidade. Como se sabe, a desconexão, o desencantamento e a crença na importância de controlar a Terra foi a tônica desde então. Ao mesmo tempo a lua foi substituída pelo sol na contagem do tempo a partir da adoção do calendário gregoriano, em 1582. Por esta época a Inquisição já havia matado centenas de mulheres pelo crime de bruxaria e judaísmo na Europa e nas Américas. Indícios sugerem que a palavra bruxa é oriunda da Península Ibérica na era antiga, anterior à invasão romana e à implementação do latim⁶, já que em outras línguas românicas a nomenclatura é distinta. Apesar de séculos de perseguição, extermínio e apagamentos, estes saberes sobrevivem tanto no lado de cá como no de lá do Atlântico. No Brasil ele convergiu com as práticas de outros povos milenares que lutam até hoje pelo direito à vida. Mas é no vídeo O dia fora do tempo que estes entrecruzamentos afloram de maneira mais direta. Filmado num ritual de queima organizado pelas erveiras da Serra da Mantiqueira, no Estado do Rio de Janeiro, a narrativa não se localiza num tempo certo e nem num lugar determinado. Estamos diante de uma ação entre mulheres de várias idades que, munidas de tochas de fogo, avançam mata adentro, dançam e queimam um imenso preparado de ervas. No calendário maia, o ano é dividido em 13 ciclos lunares de 28 dias cada. No entanto, há uma sobra, um dia que não pertence nem ao ano que acaba e nem ao que se inicia. O dia 25 de julho é chamado de o dia fora do tempo, ou seja, um dia de transição, de suspensão, de ligação e de purificação.

            Os totens criados por Mercedes Lachmann apresentam-se como entidades híbridas. Madeiras encontradas no chão são cuidadosamente esculpidas e trabalhadas respeitando seus movimentos, cavidades e caimentos. Por vezes recebem as esferas contentoras das poções herbáceas, por outras vidros ou flecha. Em todas elas, sente-se o poder de proteção e união com o sagrado. Assim como na série Arraste, a artista honra como suas ancestrais as árvores que foram desmatadas. O desmatamento é uma das consequências da modernidade no Brasil. Esta é a única nação mundial nomeada a partir de uma árvore, nação-árvore. A ibirapitanga (ybirá – árvore; pitanga – vermelho), como chamada pelos povos originários em tupi, iniciou o ciclo de exploração da então colônia portuguesa na América do Sul. Abundante no território que ia do litoral do Rio Grande do Norte ao Rio de Janeiro, num outro bioma chamado Mata Atlântica, o pau-brasil começou a ser extraído em 1502 e trinta anos depois já se tornava difícil encontrá-lo. Apesar disso, sua extração durou até 1875, chegando a causar a quase extinção da espécie. Como se sabe, o pau-brasil era usado para tingir lã, seda e algodão em vermelho, cor associada à nobreza, e subsequentemente na fabricação de móveis de luxo, embarcações e os arcos dos melhores violinos. No século XVI, eram denominados brasileiros as pessoas que extraíam e comercializavam o pau-brasil, designação que foi aplicada depois para quem nasce no país. “Não fosse a influência da exploração do pau-brasil, os habitantes do Brasil seriam chamados de brasilienses ou brasilenses (...) ou ainda brasilianos, brasílicos ou brasílios”⁷. Carregamos, portanto, na nossa nacionalidade a marca, o peso, a herança e a presença do extrativismo, mesmo sem nos apercebermos. Mercedes tem consciência disso. Sua poética busca retificar e celebrar a riqueza e a diversidade da flora de Pindorama⁸. Como nos lembra Simas e Rufino: “O colonialismo, com espectro de terror, política de morte e desencanto que se concretiza na bestialidade, no abuso, na produção incessante de trauma e humilhação, é um corpo, uma infantaria, uma máquina de guerra que ataca toda e qualquer vibração em outro tom. Assim, entoa-se a questão: quais são as possibilidades de ser em um estado radicalizado na violência? Uma possibilidade que lançamos no tempo, como fuga desse modelo, é a de viremos caboclos. Em outros termos, o ser disponibilidade e poder de invocação para praticar a viração na ciência da caboclaria”⁹. Flecha, portanto, é o rogo possível de Mercedes Lachmann e sua poética da caboclaria.


Cristiana Tejo
Lisboa, verão de 2023

           
[1] SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Morula, 2019, p. 5.
[2] SIMAS e RUFINO, Flecha no Tempo, p.7.
[3] NEVES, Eduardo Góes. Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história da Amazônia Central. São Paulo: Ubu Editora, 2022, p.16.
[4] NEVES, Sob os tempos do equinócio, p.17
[5] Importante recordar que a palavra rizoma significa tanto o órgão de reprodução das plantas quanto o conceito cunhado por Giles Deleuze e Felix Guattari para evidenciar um tipo de pensamento que constitui-se horizontalmente, de maneira multidirecional e em fluxo.
[6] MORENO, Claúdio Primo Alves. Morfologia Nominal Do Português, Um Estudo De Fonologia Lexical. 1997. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
[7] ROCHA, Yuri Tavares. Ibirapitanga: história, distribuição geográfica e conservação do pau-brasil (caesalpinia echinata LAM., leguminosae) do descobrimento à atualidade. 2004. 396 f. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004, p. 184. 
[8] Pindorama é como era chamado pelos povos originários o território nomeado pelos portugueses como Brasil.
[9] SIMAS e RUFINO, Flecha no Tempo, p.10.






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