Cristina Tejo
Julho 2023

Flecha


“Para cada discurso empedernido, uma gargalhada zombeteira zumbirá no vento feito um anti-amém, marafando letras e corporificando a palavra como a encruzilhada de onde as flechas voam para desassombrar o medo e encantar o mundo”.[1]

Pontas de flechas são um dos objetos mais comuns encontrados em coleções arqueológicas mundo afora, pois trata-se de um artefacto produzido e usado por povos em todas as regiões do planeta com elementos que resistem ao tempo. Elas são uma espécie de marcador de estágios civilizatórios que denotam o grau de complexidade de uma sociedade sob o ponto de vista Ocidental (tipo de material usado, a presença ou ausência de refinamento de sua confecção etc.), numa história contada sempre a partir das guerras, dos confrontos, dos triunfos, numa sequência linear e progressiva da humanidade. No entanto, a flecha que nomeia esta exposição é curva, múltipla, língua, símbolo e cura. Ela liga, não separa. Ela faz (re)viver e não apenas morrer. Ela é imbricação de existências, presenças, experiências e práticas de saberes e ritos como tessitura de um complexo e imensurável balaio de possibilidades de mundo para todos os tempos, todos os seres. Ela é um encantamento, como apontado por Luiz Antônio Simas: “(...) As flechas lançadas atravessarão o redemoinho do tempo e cairão em lugar que só o caboclo sabe. Lanceiros, bocas e mãos de cura, capangueiros da Jurema, naturais do Juremá, mestres das artes do fazer, amansadores de feras, senhoras dos olhos d´água, das floradas e meninos que são os faróis do mundo, o que se ergue na invocação de suas presenças?”[2].

O chamamento empreendido pelas obras de Mercedes Lachmann presentes nesta mostra começa com uma flecha, porém desemboca em porções de ervas, rituais, e totens que fundem naturezas, temporalidades e territórios (físicos e imateriais) em diálogo com a coleção arqueológica do MIEC. O arqueólogo Eduardo Góes Neves ensinou-nos que a arqueologia não estuda o passado e sim fenômenos do presente, ou seja, “os sítios arqueológicos e outros tipos de registros que viajaram pelo tempo, às vezes por milhões de anos, até os dias de hoje”[3], e que o campo de conhecimento que mais se assemelha a ela é a astronomia, já que “o brilho das estrelas ou as ondas de rádio que atingem hoje as antenas ou as lentes dos telescópios modernos são viajantes que iniciaram sua jornada pelo tempo e pelo espaço também há milhões ou bilhões de anos”[4]. As flechas e as estrelas não são, portanto, apenas vestígios nas obras de Mercedes, mas sujeitos carregados de conhecimento e de histórias que atravessaram o Oceano Atlântico numa espécie de levante dos que retornam, dos que ficaram no Brasil ou dos que nunca cá estiveram. Convidamos os visitantes a ouvirem atentamente o que essas obras invocam.


[1] SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Morula, 2019, p. 5.
[2] SIMAS e RUFINO, Flecha no Tempo, p.7.
[3] NEVES, Eduardo Góes. Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história da Amazônia Central. São Paulo: Ubu Editora, 2022, p.16.
[4] NEVES, Sob os tempos do equinócio, p.17


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