Gabriela Davies
Janeiro 2017

Águas  escondidas

Existe uma vontade de ver a vida de maneira inacabável, como se não houvesse fim. E por um lado, enquanto matérias se decompõem, elas se tornam algo novo. Todo processo de composição é de fato recomposição – a matéria vem de fonte anterior. Algo existente que se torna novo. E a vida está sempre se revolvendo dessa maneira. Existe um início, um meio, um fim e um recomeço, um processo cíclico.

Como energia que passa de matéria em matéria, e se readapta ao seu novo propósito, assim foi o trajeto de “Águas Escondidas”. Nasceu o barco, como uma plataforma para levar o homem ao mar, facilitando a pesca – o ofício de seu proprietário. E depois de um longo ciclo de idas e vindas da terra ao mar, essa fase se conclui ao naufragar nos mares de Niterói.

E foi assim, em fase de decomposição, que Mercedes o retirou do mar. O nome, quase milagrosamente surge pintado na lateral: Benção de Deus. O barco, (agora) fora de seu ambiente, toma novos rumos. Sai do mar, e vai para terra, viajando até o extremo oposto da Baía de Guanabara, ganhando uma residência temporária na Glória.

Ele deixa de ser transporte, de provedor de serviço, e se torna um objeto de contemplação onde a própria interatividade da peça com o homem é contestada. A decomposição física se torna disassociação do propósito original, ganhando uma nova narrativa. No final de sua estadia na Praça Paris, ele retorna à Niterói, onde nasceu, pelo menos desde a intervenção de Mercedes.

Ao desembarcar de volta às margens da Baía que o afundou, esse processo não se encerra, mas cria mais uma vez um recomeço. A nau que se deteriorou dentro do mar, agora ganha uma nova extensão na terra.



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